Por David Miranda
O que o mais poderoso homem do Brasil, o herdeiro bilionário do
império das organizações Globo, João Roberto Marinho, estava fazendo nos
comentários do Guardian? É verdade, seu comentário recebeu um cobiçado tag
de ‘recomendado’ pelos editores do Guardian – parabéns, João! – mas ainda
assim, não é o lugar onde se espera encontrar o multi-bilionário plutocrata
hereditário brasileiro.
Na dia 21 de Abril,
publiquei um
artigo no The Guardian, no qual abordava questões sobre
o impeachment da presidenta Dilma Rousseff e o papel da mídia dominante do
Brasil, protagonizado pela Globo. João respondeu com
raiva – e com óbvias mentiras. Os editores do Guardian puseram seu
texto na seção de comentários. Vejam só, João critica meu artigo e me chama de
mentiroso em alguns trechos de sua resposta.
Olha, João, como quase todos os brasileiros, eu tive que lutar
bastante para ganhar meu espaço. Não herdei uma grande empresa e alguns
bilhões dos meus pais. As coisas que tive que superar na minha vida foram muito
mais duras do que seu esforço para me desqualificar com condescendência, e não
é difícil demonstrar que sua resposta está cheia de falsidades.
De fato, a resposta de João merece mais atenção do que um mero
comentário porque ela está recheada de propaganda enganosa e de falsidades
pró-impeachment – exatamente o que ele tenta negar que a Globo esteja fazendo –
e portanto revela uma grande coisa (Hoje, o comentário dele foi
atualizado para uma carta).
Antes de entrar naquilo que João realmente fala, vamos começar
com algo que ele não menciona: o histórico papel da Globo no Brasil. Sob o
comando de seu pai, a Globo saudou e glorificou o golpe civil
militar que removeu um governo de esquerda e democraticamente eleito
no país. Ainda pior, passaram os 20 anos seguintes como o grande meio de
propaganda da brutal ditadura militar que torturou e matou dissidentes e
suprimiu toda e qualquer opinião divergente. Em 1984, a Globo simplesmente
mentiu para o país quando descreveu um enorme protesto pró-democracia
em São Paulo como uma festa pelo aniversário da cidade. A
riqueza e o poder da família Marinho cresceram como resultado direto de sua
servidão aos militares ditadores do Brasil.
No momento em que os protestos anti-governo explodiram, em 2013,
já havia um amplo consenso entre os brasileiros a respeito do golpe militar, e
a história da Globo se tornou um enorme constrangimento corporativo. Então,
fizeram o que toda corporação faz uma vez que sua má conduta se volta contra
sua marca: finalmente reconheceram o que fizeram e – quase meio século depois
– pediram desculpas.
Mas tentaram diluir sua responsabilidade dizendo –
acertadamente – que outras organizações de mídia que ainda dominam o Brasil e
que têm sido tão apoiadoras do Impeachment quanto a Globo (como Estadão e
Abril) também apoiaram o golpe. Tentavam diminuir o apoio da Globo não só
ao golpe mas também aos 20 anos de ditadura que se seguiram. Mas as
organizações continuam sob o comando da mesma família, com as mesmas táticas e
os mesmos objetivos.
Essa é a infame história da Globo e da família Marinho no
Brasil, uma de suas principais fontes de riqueza e poder, e um reflexo do papel
que continuam a desempenhar – eles e suas bem pagas personalidades de TV. Essa
não é a conduta de uma organização de mídia genuína. É a conduta de uma família
oligárquica usando seus meios de comunicação para moldar e manipular a opinião
pública em favor de seus interesses. Passemos agora ao comentário de João:
O
artigo do Sr. David Miranda (“A verdadeira razão dos inimigos de Dilma Rousseff
quererem cassá-la”, de 21 de abril, publicado pelo The Guardian) pinta uma
completamente falsa imagem do que estáacontecendo no Brasil hoje. Ele não
menciona que tudo começou com uma investigação (chamada Operação Lava-Jato),
que por sua vez revelou o maior esquema de suborno e corrupção na história do
país, envolvendo os principais membros do Partido dos Trabalhadores (PT), assim
como líderes de outros partidos da coalizão do governo, funcionários públicos e
magnatas dos negócios.
O que é “completamente falso” é a tentativa de João de levar os
leitores a acreditarem que a Lava Jato é o que está por trás do impeachment de
Dilma. É verdade que o PT, como a maioria dos grandes partidos, se mostrou
repleto de enormes problemas de corrupção, e que muitas de suas figuras estão
implicadas na Lava Jato. O caso jurídico para o impeachment não está, no
entanto, baseado em nada daquilo, mas em argumentos de que ela manipulou o
orçamento público para fazê-lo parecer mais forte do que realmente era.
A enganosa tentativa de João de confundir o público estrangeiro
misturando a operação Lava Jato com o impeachment de Dilma exemplifica
perfeitamente o tipo de fraude e o viés pró-impeachment que a Globo vem disseminando
institucionalmente por mais de um ano.
Além disso, as figuras políticas que a Globo vem cortejando, e
que serão aqueles implantados pelo impeachment – incluindo o Vice
Presidente Michel Temer e o Presidente da Câmara Eduardo Cunha, ambos
do PMDB – são, ao contrário de Dilma, acusados de graves atos de corrupção
pessoal, provando que, quando pessoas como João citam a corrupção para
justificar o impeachment, esse é um mero pretexto para remover,
antidemocraticamente, a líder que eles repudiam e instalar aqueles de sua
predileção.
A
imprensa brasileira em geral, e o Grupo Globo, em particular, cumpriram o seu
dever de informar sobretudo, como teria sido o caso em qualquer outra
democracia no mundo. Vamos continuar a fazer o nosso trabalho, não importa quem
possa ser afetado pela investigação.
A sugestão de que a Globo é uma organização de notícias neutra e
imparcial – ao invés de principal braço de propaganda da oligarquia brasileira
– é cômica para qualquer um que já tenha assistido a seus programas. A rigor, a
parcialidade da Globo, e em particular de seu principal show noturno de
notícias, o Jornal Nacional, tem sido tão escancarada que se tornou uma
fonte inesgotável de piadas. Essa é uma razão pela qual os manifestantes
pró-democracia escolheram os edifícios das organizações Globo como alvos.
Precisamente
para evitar qualquer acusação de incitar manifestações de massa – como o Sr.
Miranda agora nos acusa – o Grupo Globo cobriu os protestos sem nunca anunciar
ou dar parecer sobre eles em seus canais de notícias antes de acontecerem.
Globo tomou medidas iguais sobre comícios para a presidente Dilma Rousseff e
contra o impeachment: ela cobriu todos, sem mencioná-los antes deles realmente
ocorrem, concedendo-lhes o mesmo espaço que foi dado aos protestos anti-Dilma.
Quando o processo de impeachment começou na Câmara “Baixa” do Congresso,
alocamos igual tempo e espaço para a defesa e acusação.
Que as corporações de mídia dominantes no Brasil são braços de
propaganda de direita dos ricos não está em discussão. O universalmente
respeitado grupo Repórteres sem Fronteiras acabaram de mostrar o Brasil em 104°
lugar no ranking de liberdade de imprensa, explicando que isso se
deve, em grande parte, ao fato de que a mídia no país é dominada e
controlada por um pequeno número de famílias muito ricas:
De
maneira pouco velada, o principal grupo de mídia nacional exortou o
público a ajudar na derrubada da Presidenta Dilma Rousseff. Os jornalistas que
trabalham para esses grupos de mídia estão claramente sujeitos à influência dos
interesses privados e partidários, e esse permanente conflito de interesses
ocorre em claro detrimento da qualidade de seu jornalismo.
Jornalistas estrangeiros residentes no Brasil frequentemente
apontam para o fato de que as principais organizações de mídia brasileiras são
o oposto de neutras e imparciais. Stephanie Nolen, repórter do
Canadense Globe and Mail baseada no Rio, escreveu no mês
passado sobre uma coluna da revista Veja, que classificou como uma
”revista distribuída nacionalmente e que se inclina, como a maioria da mídia
brasileira, para a direita.” Alex Cuadros, jornalista americano há muito
tempo residente no Brasil, observou: “os principais meios de comunicação
se inclinam politicamente para a direita, e sua cobertura frequentemente reflete
isso.” Disse ainda: “Há muito pouca crítica da mídia no Brasil que não
seja descaradamente partidária, então as grandes revistas podem distorcer os
fatos sem grande medo de censura.”
O colunista da Folha, Celso Rocha de
Barros, documentou como a mídia dominante no Brasil tem obsessão por
notícias de corrupção relacionadas ao PT enquanto minimizam ou ignoram notícias
igualmente chocantes sobre líderes da oposição de sua predileção. A Globo, por
exemplo, visivelmente enterrou as notícias sobre a lista da Odebrecht. Um de
seus comentaristas, Arnaldo Jabor, chegou a insinuar que se tratava
de uma conspiração do governo.
Compare, por exemplo, os 14 minutos melodramaticamente
gastos pelo Jornal Nacional reencenando as ligações de Lula como se fossem
uma novela aos 2 minutos e 23 segundos que dedicou à lista da Odebrecht.
Em nenhum dos dois casos a ilegalidade estava expressa, como foi a
justificativa para a não divulgação da lista da Odebrecht. Em ambos os casos,
portanto, a investigação da PF deveria ter sido aguardada – dois
pesos, duas medidas.
Por mais de um ano, uma capa atrás da outra,
a revista Época usou imagens
manipuladoras e detratoras para incitar o
público a apoiar oimpeachment. O Twitter das estrelas da
Globo – do jornalismo e do entretenimento – estão cheios de propaganda
cotidiana a favor do impeachment. Mesmo quando o Jornal Nacional tenta negar
que está colocando grande peso a favor dos protestos pelo impeachment, não
funciona: glorificam esses protestos e dão a eles muito mais tempo do que os
protestos opostos:
[N.E.: O vídeo AQUI, de um trecho
particularmente tendencioso do Jornal Nacional – em que o âncora William Bonner
defende a cobertura da globo como imparcial enquanto glorifica os protestos
pró-impeachment – esteve disponível no YouTube por meses. No entanto, depois de
ser citado neste artigo como um justo exemplo da parcialidade da Globo, foi
removido durante a noite, depois de a Rede Globo exigir sua remoção do YouTube
com base nos direitos de copyright.
Não há nada inerentemente errado com uma mídia partidária e
ativista. Todas estas organizações, incluindo Globo, têm jornalistas
competentes trabalhando para elas, e fazem boas reportagens, mesmo sobre este
sério escândalo de corrupção. Mas o que está errado é enganar o público dizendo
a ele o que todos sabem ser falso: que a Globo e outras grandes organizações
são neutras e livres de opinião, que são meros observadores dos eventos
políticos ao invés de seus privilegiados agentes.
O
Grupo Globo não apoiou o impeachment em editoriais. Ele simplesmente declarou
que, independentemente do resultado, tudo tinha de ser conduzido de acordo com
a Constituição, que na verdade tem sido o caso até agora.
João insiste que a Globo não tem posição editorial a respeito do
impeachment, e então – na mesma sentença! – passa a justificar o impeachment
como perfeitamente legal e constitucional, um debate que está em acirrada
disputa entre juristas.
O
Supremo Tribunal Federal – onde oito dos onze juízes foram nomeados pelas
administrações do PT presidentes Lula e Dilma – aprovou todo o processo.
De fato, a Suprema Corte ainda não julgou se as acusações contra
Dilma justificam ou não o impeachment perante a Constituição, e
há muitosperitos que acreditam – contra o que pensa
o João – que não. Um ex-membro desse tribunal, que
supervisionou a acusação de autoridades do PT pelo escândalo do mensalão, o
juiz Joaquim Barbosa, disse na semana passada que “sente um ‘mal
estar’ com a fundamentação do processo de impeachment da presidente Dilma
Rousseff e que a alegação ‘é fraca e causa desconforto.’”
Claro, é permitido que João discorde do ex-Ministro
Barbosa, mas ele tem que parar de fingir que não está apoiando
vigorosamente o impeachment. Tudo o que João escreveu mostra isso.
Por
último, a afirmação de que o Grupo Globo pauta a mídia nacional, especialmente
vindo de um cidadão brasileiro, só pode ser feita de má fé. A
imprensa brasileira é uma paisagem vasta e plural de várias organizações
independentes, 784 jornais diários impressos, 4.626 estações de rádio, 5 redes
nacionais de transmissão de televisão, 216 canais a cabo pagos e outra
infinidade de sites de notícias. Todo mundo compete com grande zelo pelo o
público brasileiro, que por sua vez é livre para fazer suas escolhas.
Entre os concorrentes fortes, o que se encontra é a independência, sem
qualquer tolerância para ser conduzido.
A única “ma fé” é a tentativa de
João de negar o domínio de seus próprios meios de comunicação. Em junho de
2014, The Economist publicou umartigo sobre
a Globo. A manchete? “Domínio da Globo.” A reportagem
mostrava que “não menos de 91 milhões de pessoas, quase a metade da população,
sintonizam a TV todos os dias: o tipo de audiência que, nos Estados Unidos,
acontece uma vez por ano” – no Super Bowl. Em suma, “a Globo é certamente a
empresa mais poderosa do Brasil, dado seu alcance de tantos lares.”
Muitos dos meios citados por João são de propriedade da Globo e
sua irmã plutocrática, a Abril. The Economist explicou: “A Globo têm
estações de TV paga, revistas, rádios, produção de filmes e jornais como parte
de seu império.” Como resultado, “críticas são afastadas pela fatia de
publicidade e audiência da empresa. Ela controla tudo, desde o acesso dos
brasileiros às notícias até as taxas de mercado para os salários dos
jornalistas.”
Como a colunista Vanessa Barbara apontou, no ano passado,
no The New York Times: “Em todo lugar que vou há uma televisão ligada, em
geral na Globo, e todos estão olhando hipnoticamente para ela.” Disse também:
“sendo a maior empresa de mídia da América Latina, a Globo pode exercer
considerável influência em nossa política.”
Que a Globo desempenha um papel dominante na opinião pública
está provado pelos dados, mas também pelas ações governamentais. Sob Lula e
Dilma, o governo brasileiro despejou bilhões de dólares em dinheiro dos
contribuintes para a gigante de mídia.
É verdade que a Globo não detém todos os meios de comunicação
influentes. Há uma pequena quantidade de outras famílias bilionárias que são
donas de quase todo o resto.
Quando os Repórteres sem Fronteiras publicaram semana
passada seu Ranking de Liberdade de Imprensa de 2016, e o Brasil apareceu
em 104°lugar, eles destacavam a violência contra jornalistas e também outro
fato importante: “A propriedade dos meios de comunicação continua muito
concentrada, especialmente nas mãos de grandes famílias ligadas àindústria que
são, muitas vezes, próximas da classe política.”
Não é só a propriedade da mídia que carece de diversidade, mas
também aqueles que eles contratam para trabalhar. Como a Folha documentou
no ano passado, “de 555 colunistas e blogueiros de 8 veículos da imprensa
(Folha, O Estadao de S. Paulo, O Globo, Epoca, Veja, G1, UOL e R7), 6 são
negros. Também por isso o debate sobre racismo ocorre longe da maioria da
população a quem, no dia a dia, ele não afeta ou interesse.” É claro
que essa enorme disparidade molda a cobertura da mídia de maneira geral.
É verdade que a internet está ameaçando o domínio da Globo. As
mídias sociais pormitiram aos brasileiros compartilhar informação por fora do
império global, e agora podemos ler artigos e jornais estrangeiros (como oThe
Guardian) que fornecem informação que ultrapassa muito os estreitos limites de
opinião permitidos pela Globo, Abril/Veja e Estadão.
É precisamente por isso que João
está combatendo artigos como os meus em jornais estrangeiros: porque ele tem
medo do que acontecerá se ele perder o controle do fluxo de informação que os
brasileiros recebem. Como a família Marinho sabe desde a década de 90, quando
Roberto Marinho conseguiu fazer um tribunal brasileiro barrar a transmissão de
um filme extremamente crítico à Globo (“Além do Cidadão Kane”: disponívelAQUI), a internet ameaça o
monopólio da Globo sobre as notícias e a opinião pública. É por isso que estão
furiosos. É também por isso – como explico nesse
vídeo – que é tão vital proteger e salvaguardar o livre
acesso à internet.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sua Opinião é Muito Importante Para Nós!